quinta-feira, 4 de setembro de 2014

HESSE - O CORDEIRO EM PELE DE LÔBO

Eu, o Lobo da Estepe, vago errante
Pelo mundo de neve recoberto;
Um corvo sai de uma árvore, adejante,
Mas não há lebre ou corça aqui por perto!
Ansiando eu vivo de encontrar a corça,
Ah! se pudesse achar alguma um dia!
Tê-la entre os dentes, agarrá-la à força,
Nada mais belo para mim seria.
Havia de tratá-la tão cordial,
De cravar-lhe nas ancas o meu dente,
Beber-lhe o sangue todo, até o final
E uivar na noite solitariamente.
Até mesmo uma lebre hoje me basta!
À noite a carne tenra é preferida.
Porque sempre de mim logo se afasta
Tudo o que torna alegre a nossa vida?
Já meus pelos da cauda estão grisalhos
Nem posso ver mais nítida uma cousa;
Há muito que morreu a minha esposa
E vago e vejo corças nos atalhos,
E sonho e sinto lebres; a ânsia é tanta
Que ouvindo o vento uivar na noite incalma,

Com neve aplaco o fogo da garganta
E entrego ao diabo a minha pobre alma.
Ler a obra de um autor é ler o autor.Pode parecer óbvio e eu posso parecer sonso em dizer isso , aliás , nem sei porque estou escrevendo .Muitas vezes tenho abordado o aspecto da criação da arte,chamando a atenção às circunstâncias em que se dá  essa criação.Os maiores e mais aclamados artistas não viveram uma vida normal , no sentido comum que entendemos.Apreciamos uma obra , muitas vezes, sem saber o inferno ou o paraíso inspiradores do belo , do profundo, do significativo ou, simplesmente,da imagem ou da palavra que “cala na gente” produzindo de imediato uma identificação com alguma faceta da nossa personalidade , do nosso jeito de ser.

Hermann Hesse foi um autor “ traduzido” e adotado por uma geração.
Na década de 1970 , quem não gostava de citar “ O Lobo da Estepe” ou “Sidarta”, ou ainda lê-los no ônibus, ou simplesmente carrega-los a tiracolo como se fossem uma carteira de identidade ou uma caixa de primeiros socorros para personalidades em formação ?Eu disse “ traduzido” porque na maioria das vezes a tradução prima pelo sentido das palavras , mas o espírito do autor , a maneira de pensar que influi a construção do idioma permanece no  original.

Hermann Hesse era o próprio lobo da estepe.Críticos e literatos alemães o consideram a ovelha negra de uma rígida família de princípios religiosos.Uma coisa é certa: Hesse não era uma pessoa normal !Talvez ele tenha adotado o pensamento de Nietzsche e seu “ sobre humano” e para sobreviver às suas angústias tornou-se o super homem relegando a dor , o sofrimento e os relacionamentos a um lugar de somenos importância, demolindo fronteiras para tornar-se , simplesmente , um homem , uma pessoa , um lobo solitário nas estepes ,um Peter Camenzind…um Demian , um Sidarta sem identidade.

Hesse estava destinado a ser um pastor, um pregador.Foi matriculado pelos país em rígidas escolas, juntamente com seu irmão Hans.
Castigos corporais eram medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades. Abusos, com graves lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um trauma escolar: Teve sua coluna fraturada em virtude de tais métodos.Foi um trauma que não conseguiu superar encerrando sua curta vida com o suicídio .Esse fato marcou a vida de Hermann Hesse .

Assim , não creio que ovelha negra seja uma descrição de sua pessoa.A ovelha negra , simplesmente, destoa do conjunto.Hermann Hesse disfarçou-se para sobreviver.Se ele era um lobo, não era um lobo em pele de cordeiro , eu penso o contrário,Hesse era um cordeiro em pele de lobo.Só assim poderia afastar as ameaças que o mundo lhe reservava.A família de Hermann Hesse era influente e possuía vasta cultura.Seus avós eram artistas e poliglotas, assim como seu pai.

Seu relacionamento com a mãe, a quem amava profundamente ,terminou quando escreveu um pequeno texto com o título “Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria. Enganou-se. A mãe, num gesto indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho do filho. Passado mais de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio e disse nunca ter perdoado a mãe.

Aos 14 anos o pai o interna num mosteiro para que seguisse a missão religiosa da família.Lá ele escreve peças de teatro em latim e acaba fugindo do mosteiro,cortando, talvez os últimos laços com a família .Da revolta que ele sentia pela opressão desse oceano de obrigações a que a família o submetia ele escreveu :

“Que pessoas encarem a sua vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas de qualquer impulso egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi uma vivência da minha juventude que me influenciou profundamente”.

Hesse vivia o inferno de amar-se,orgulhando-se do seu trabalho e odiando-se pelo que a vida tinha reservado para ele.Talvez por isso ele tenha escrito em “O Lobo da Estepe” :”Sem amor próprio é impossível amar outra pessoa.O ódio por si mesmo é idêntico ao egoísmo e, no final conduz ao mesmo isolamento cruel e ao mesmo desespero”.

Nenhum dos seus casamentos durou muito.Ele não estava preparado para dar de si a quem necessitava de amparo e atenção.
Quando  Maria Bernoulli, sua primeira esposa, com quem tivera três filhos,começou a demonstrar desequilíbrio psiquico, ele chega à conclusão que, para dar continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é internada num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e amigos.Livre dos estorvos ele se muda para a Suíça.
Ainda em “ O Lobo da Estepe” Hesse escreveria: “: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos”.
Embora religiosa, a família Hesse era abastada e pertencia a burguesia.Seus país, em missão religiosa, haviam estado na Índia.Talvez esse fato tenha influenciado a sua ida a Índia em busca da libertação desse rótulo e da purificação de si próprio,Anos mais tarde essa experiência inspiraria a produção de “Sidarta” , uma obra começada e interrompida por um surto psicótico que lhe valeu uma internação e tratamento com Jung.Essa obra, saída da quase loucura e profunda depressão valeu-lhe o Nobel de Literatura em 1946 .


Hesse conhecia muita gente influente e famosa,mas afastava sistematicamente o convívio com elas.Após casar-se pela terceira vez em  1931 com Ninon Dolbin, muda-se para uma casa cedida a ele por um admirador,H. C.Bodmer, com ocupação garantida até a sua morte.Na porta da frente Hesse colocou uma tabuleta com o seguinte aviso : “ NÃO RECEBO VISITAS”.
Ele apenas seguia o que escrevera no seu romance “ Knulp” de 1915.
Assim , seus casamentos e suas relações foram tratadas :
“Entre os seres humanos, mesmo se intimamente unidos, permanece sempre aberto um abismo que apenas o amor pode superar, e mesmo assim somente como uma passagem de emergência.”
Conta-se que a sua amizade com Thomas Mann acabou no dia em que esse foi fazer uma visita a Hesse e viu a placa.Voltou sem se fazer anunciar e nunca mais se viram.
Apesar desse ostracismo jamais deixou de responder uma carta.Correspondeu-se com seu avô paterno até a sua morte, sem nunca te-lo conhecido pessoalmente.
Hermann Hesse faleceu em 1962 aos 85 anos.Deixou-nos uma obra muito rica,mas muito alem dessa riqueza deixou-nos todos os significados possíveis de “solidão” .
Sem pretensões eu coloco abaixo uma tradução livre do seu poema “Im Nebel ( Na Neblina)-Talvez um resumo de toda sua vida.

Estranho é caminhar na neblina,
Solitário está cada arbusto e cada pedra
Nenhuma árvore vê a outra , todos estão sós.
Meu mundo era cheio de amigos,
Enquanto minha vida era luminosa,
Mas, agora, quando a neblina cai , ninguém mais é visível.
Na verdade , ninguém é tão sábio que não conheça a escuridão,
O indivisível e o silêncio dividem a todos.
Estranho é caminhar na Neblina.
A vida é solitária
Nenhuma pessoa conhece a outra,
Todos estão sós .

 


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