HESSE - O CORDEIRO EM PELE DE LÔBO
Eu, o Lobo da Estepe, vago errante
Pelo mundo de neve recoberto;
Um corvo sai de uma árvore, adejante,
Mas não há lebre ou corça aqui por perto!
Ansiando eu vivo de encontrar a corça,
Ah! se pudesse achar alguma um dia!
Tê-la entre os dentes, agarrá-la à força,
Nada mais belo para mim seria.
Havia de tratá-la tão cordial,
De cravar-lhe nas ancas o meu dente,
Beber-lhe o sangue todo, até o final
E uivar na noite solitariamente.
Até mesmo uma lebre hoje me basta!
À noite a carne tenra é preferida.
Porque sempre de mim logo se afasta
Tudo o que torna alegre a nossa vida?
Já meus pelos da cauda estão grisalhos
Nem posso ver mais nítida uma cousa;
Há muito que morreu a minha esposa
E vago e vejo corças nos atalhos,
E sonho e sinto lebres; a ânsia é tanta
Que ouvindo o vento uivar na noite incalma,
Com neve aplaco o fogo da garganta
E entrego ao diabo a minha pobre alma.
Ler a obra de um autor é ler o autor.Pode parecer óbvio e eu posso parecer
sonso em dizer isso , aliás , nem sei porque estou escrevendo .Muitas vezes
tenho abordado o aspecto da criação da arte,chamando a atenção às
circunstâncias em que se dá essa criação.Os maiores e mais aclamados
artistas não viveram uma vida normal , no sentido comum que
entendemos.Apreciamos uma obra , muitas vezes, sem saber o inferno ou o paraíso
inspiradores do belo , do profundo, do significativo ou, simplesmente,da imagem
ou da palavra que “cala na gente” produzindo de imediato uma identificação com
alguma faceta da nossa personalidade , do nosso jeito de ser.
Hermann Hesse foi um autor “ traduzido” e adotado
por uma geração.
Na década de 1970 , quem não gostava de citar “ O Lobo da Estepe” ou
“Sidarta”, ou ainda lê-los no ônibus, ou simplesmente carrega-los a tiracolo
como se fossem uma carteira de identidade ou uma caixa de primeiros socorros
para personalidades em formação ?Eu disse “ traduzido” porque na maioria das
vezes a tradução prima pelo sentido das palavras , mas o espírito do autor , a
maneira de pensar que influi a construção do idioma permanece no
original.
Hermann Hesse era o próprio lobo da estepe.Críticos
e literatos alemães o consideram a ovelha negra de uma rígida família de
princípios religiosos.Uma coisa é certa: Hesse não era uma pessoa normal
!Talvez ele tenha adotado o pensamento de Nietzsche e seu “ sobre humano” e
para sobreviver às suas angústias tornou-se o super homem relegando a dor , o
sofrimento e os relacionamentos a um lugar de somenos importância, demolindo
fronteiras para tornar-se , simplesmente , um homem , uma pessoa , um lobo
solitário nas estepes ,um Peter Camenzind…um Demian , um Sidarta sem
identidade.
Hesse estava destinado a ser um pastor, um
pregador.Foi matriculado pelos país em rígidas escolas, juntamente com seu
irmão Hans.
Castigos corporais eram medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas
autoridades. Abusos, com graves lesões corporais, eram frequentes e impunes.
Hans sofreu um trauma escolar: Teve sua coluna fraturada em virtude de tais
métodos.Foi um trauma que não conseguiu superar encerrando sua curta vida com o
suicídio .Esse fato marcou a vida de Hermann Hesse .
Assim , não creio que ovelha negra seja uma
descrição de sua pessoa.A ovelha negra , simplesmente, destoa do
conjunto.Hermann Hesse disfarçou-se para sobreviver.Se ele era um lobo, não era
um lobo em pele de cordeiro , eu penso o contrário,Hesse era um cordeiro em
pele de lobo.Só assim poderia afastar as ameaças que o mundo lhe reservava.A
família de Hermann Hesse era influente e possuía vasta cultura.Seus avós eram
artistas e poliglotas, assim como seu pai.
Seu relacionamento com a mãe, a quem amava
profundamente ,terminou quando escreveu um pequeno texto com o título “Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria.
Enganou-se. A mãe, num gesto indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho
do filho. Passado mais de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio
e disse nunca ter perdoado a mãe.
Aos 14 anos o pai o interna num mosteiro para que
seguisse a missão religiosa da família.Lá ele escreve peças de teatro em latim
e acaba fugindo do mosteiro,cortando, talvez os últimos laços com a família .Da
revolta que ele sentia pela opressão desse oceano de obrigações a que a família
o submetia ele escreveu :
“Que pessoas encarem a sua vida como vassalas de
Deus e que procurem, isentas de qualquer impulso egoístico, viver a serviço e
sacrifício para com Deus foi uma vivência da minha juventude que me influenciou
profundamente”.
Hesse vivia o inferno de amar-se,orgulhando-se do
seu trabalho e odiando-se pelo que a vida tinha reservado para ele.Talvez por
isso ele tenha escrito em “O Lobo da Estepe” :”Sem amor próprio é impossível
amar outra pessoa.O ódio por si mesmo é idêntico ao egoísmo e, no final conduz
ao mesmo isolamento cruel e ao mesmo desespero”.
Nenhum dos seus casamentos durou muito.Ele não
estava preparado para dar de si a quem necessitava de amparo e atenção.
Quando Maria Bernoulli, sua primeira esposa, com quem tivera três
filhos,começou a demonstrar desequilíbrio psiquico, ele chega à conclusão que,
para dar continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é
internada num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de
parentes e amigos.Livre dos estorvos ele se muda para a Suíça.
Ainda em “ O Lobo da Estepe” Hesse escreveria: “: “Solidão é
independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos”.
Embora religiosa, a família Hesse era abastada e pertencia a
burguesia.Seus país, em missão religiosa, haviam estado na Índia.Talvez esse
fato tenha influenciado a sua ida a Índia em busca da libertação desse rótulo e
da purificação de si próprio,Anos mais tarde essa experiência inspiraria a
produção de “Sidarta” , uma obra começada e interrompida por um surto psicótico
que lhe valeu uma internação e tratamento com Jung.Essa obra, saída da quase
loucura e profunda depressão valeu-lhe o Nobel de Literatura em 1946 .
Hesse conhecia muita gente
influente e famosa,mas afastava sistematicamente o convívio com elas.Após
casar-se pela terceira vez em 1931 com Ninon Dolbin, muda-se para uma
casa cedida a ele por um admirador,H. C.Bodmer, com ocupação garantida até a
sua morte.Na porta da frente Hesse colocou uma tabuleta com o seguinte aviso :
“ NÃO RECEBO VISITAS”.
Ele apenas seguia o que escrevera no seu romance “ Knulp” de 1915.
Assim , seus casamentos e suas relações foram tratadas :
“Entre os seres humanos, mesmo se intimamente unidos, permanece sempre
aberto um abismo que apenas o amor pode superar, e mesmo assim somente como uma
passagem de emergência.”
Conta-se que a sua amizade com Thomas Mann acabou no dia em que esse
foi fazer uma visita a Hesse e viu a placa.Voltou sem se fazer anunciar e nunca
mais se viram.
Apesar desse ostracismo jamais deixou de responder uma
carta.Correspondeu-se com seu avô paterno até a sua morte, sem nunca te-lo
conhecido pessoalmente.
Hermann Hesse faleceu em 1962 aos 85 anos.Deixou-nos uma obra muito
rica,mas muito alem dessa riqueza deixou-nos todos os significados possíveis de
“solidão” .
Sem pretensões eu coloco abaixo uma tradução livre do seu poema “Im
Nebel ( Na Neblina)-Talvez um resumo de toda sua vida.
Estranho é caminhar na neblina,
Solitário está cada arbusto e cada pedra
Nenhuma árvore vê a outra , todos estão sós.
Meu mundo era cheio de amigos,
Enquanto minha vida era luminosa,
Mas, agora, quando a neblina cai , ninguém mais é visível.
Na verdade , ninguém é tão sábio que não conheça a escuridão,
O indivisível e o silêncio dividem a todos.
Estranho é caminhar na Neblina.
A vida é solitária
Nenhuma pessoa conhece a outra,
Todos estão sós .
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